Cartão postal comemorativo da descoberta do celacanto por Marjorie Courtenay-Latimer.
Imagine que um dia algum amigo te chame para ajudá-lo a identificar um “bicho diferente” que foi encontrado, e ao chegar você se depara com… Um dinossauro?! Como pode?? É assim que deve ter se sentido James Leonard Brierley Smith, ictiólogo sul-africano, ao ver o bicho que Marjorie Eileen Doris Courtenay-Latimer guardou para ele “não há a menor sombra de dúvida” ele disse, “poderia ter sido uma daquelas criaturas de 200 milhões de anos que voltou à vida!”
Marjorie Courtenay-Latimer foi uma naturalista autodidata nascida em East London, na África do Sul, que desde a infância sempre demonstrou uma grande paixão e interesse pela natureza, especialmente por pássaros. Apesar de nunca ter recebido treinamento formal, seu profundo conhecimento da vida selvagem local lhe rendeu o cargo de curadora do East London Museum. Como parte de suas responsabilidades, para expandir a coleção do museu, Courtenay-Latimer estava sempre à procura de pedras, fósseis, plantas e animais únicos – sua dedicação a levou a estabelecer uma boa relação com os pescadores locais, que lhe avisavam sempre que encontravam algo diferente.
Na manhã do dia 22 de dezembro de 1938, enquanto estava preparando um importante fóssil para a exposição, Latimer recebeu uma ligação informando que um pescador que ela conhecia, capitão Hendrik Goosen, havia encontrado algo que provavelmente seria de seu interesse. Latimer ficou relutante em ir, ela precisaria interromper uma tarefa importante e era um dia de muito calor, mas estava perto do Natal e ela sentiu que deveria dar as felicitações e agradecer ao capitão e a toda a tripulação pela gentileza. Ao chegar no porto, a bordo da traineira Nerine, à procura do tal animal, ela passou por tubarões, raias, algas, esponjas… Até que o avistou: “eu afastei uma camada de lodo para revelar o peixe mais bonito que já vi na vida”, ela disse, “tinha cerca de um metro e meio, um azul pálido com leves manchas esbranquiçadas, apresentava um brilho iridescente prateado-azul-esverdeado por todo o corpo; estava coberto de escamas duras, tinha quatro nadadeiras semelhantes a membros e uma uma estranha cauda como a de um cachorrinho.”
Latimer estava certa de que isso era um achado importante e que deveria levá-lo ao museu. Com a ajuda de sua assistente, colocou o peixe num saco e convenceu um taxista que relutantemente a ajudou a transportar o peixe fedido de quase 60kg na traseira de seu carro. No museu ela consultou seus livros e referências para tentar identificar o estranho peixe, mas sem sucesso, não encontrou nada parecido; tentou entrar em contato com o especialista James Smith, mas ele estava viajando para o Natal. O presidente do museu, no entanto, não se interessou pelo achado “você está fazendo tanto alvoroço por esse bicho, mas não passa de um bacalhau!” e recomendou que fosse descartado, mas ela estava determinada a preservar o peixe até que pudesse ser identificado corretamente.
O museu não tinha estrutura ou equipamentos para preservar um espécime tão grande, Latimer tentou levá-lo para um frigorífico e até para o necrotério, mas ambos se recusaram a armazenar a “carcaça fedorenta”. Então, com a ajuda do taxidermista local, ela embrulhou o peixe com jornais embebidos em formol e um lençol velho.
Sem conseguir contato com Smith, por conta de sua viagem, Latimer então decidiu enviar-lhe uma carta contando de sua descoberta e com um desenho do peixe. Com o passar dos dias e devido ao calor, mesmo embrulhado em formol, o peixe começou a soltar óleo e, temendo que apodrecesse, Latimer não teve escolha a não ser mandar o animal para ser taxidermizado.
Desenho original de Courtenay-Latimer em sua carta enviada para J. L. B. Smith.
Foi somente no dia 03 de janeiro que Smith recebeu a carta e, ao ver o desenho e descrição, ele imediatamente reconheceu: parecia se tratar de um Celacanto, mas como? Esses peixes já eram conhecidos no registro fóssil, existiam há cerca de 400 milhões de anos e, até onde se sabia, foram extintos na grande extinção em massa que marca o fim do Cretáceo, junto dos dinossauros! Ele precisava ver isso com seus próprios olhos. Smith não pôde ir para East London ver o peixe tão logo quanto gostaria, mas imediatamente entrou em contato com Dr. Barnard do South African Museum pedindo que lhe enviasse um livro específico sobre esses animais, e mandou um telegrama à Latimer com uma solicitação: “o mais importante é preservar as brânquias e esqueleto do peixe descrito”, mas já era tarde demais, os órgãos já haviam sido descartados pois começaram a apodrecer com o calor do verão. Em sua carta à Latimer, ele escreveu: “Pelo seu desenho e descrição, o peixe lembra formas que foram extintas há muitos anos [...] Acho que deve ser de grande valor científico.”
Smith estava em uma situação difícil ao pensar nas implicações dessa possível descoberta, por um lado era muito empolgante – ser o cientista a descrever um fóssil vivo, nadando no fundo dos oceanos – mas se ele anunciasse tal absurdo e estivesse errado, certamente seria motivo de piada e teria sua credibilidade questionada. Ele chegou a comentar sobre sua desconfiança de que um celacanto pudesse ter sido descoberto vivo a Dr. Barnard, mas sua resposta foi "expressa em termos tão incrédulos e jocosos" que Smith foi assolado por dúvidas e descrença. Smith e Latimer continuaram trocando cartas, até que ela lhe enviou algumas escamas que ele havia solicitado – quando ele as viu, não restaram dúvidas, Smith respondeu à Latimer "Muito obrigado pela sua carta e pelo pacote de escamas. Elas deixam poucas dúvidas sobre a natureza do peixe, mas mesmo assim minha mente ainda se recusa a compreender esta tremenda impossibilidade."
Finalmente, depois de fortes chuvas que inundaram as estradas e outros atrasos, dia 16 de fevereiro de 1939, Smith chegou a East London. Em seu livro Old Fourlegs, The Story of the Coelacanth, ele relata este momento:
“Fomos direto para o Museu. Srta. Latimer estava fora no momento, o zelador nos conduziu para a sala interna e lá estava o... Celacanto, sim, Deus! Embora eu tivesse ido preparado, aquela primeira visão me atingiu como uma explosão incandescente e me fez sentir trêmulo e estranho, meu corpo formigou. Fiquei parado como se tivesse sido transformado em pedra. Sim, não havia sombra de dúvida, escama por escama, osso por osso, nadadeira por nadadeira, era um verdadeiro Celacanto. Poderia ter sido uma daquelas criaturas de 200 milhões de anos que voltou à vida. Esqueci todo o resto e apenas olhei e olhei, e então quase com medo me aproximei e toquei e acariciei, enquanto minha esposa observava em silêncio. Srta. Latimer entrou e cumprimentou-nos calorosamente. Só então voltei a falar, esqueci as palavras exatas, mas foi para dizer-lhes que era verdade, era mesmo verdade, era sem dúvida um Celacanto. Nem eu poderia duvidar mais.”
Smith nomeou a espécie do celacanto como Latimeria chalumnae em homenagem à Marjorie Courtenay-Latimer e às águas onde foi pescado, próximo à foz do rio Chalumna. Ele anunciou oficialmente a descoberta em uma letter para a Nature no dia 18 de março do mesmo ano com o título “A Living Fish of Mesozoic Type” e passou os próximos quatro meses trabalhando em uma descrição mais detalhada do peixe.
Mas apesar de toda a empolgação com a grande descoberta, ainda faltava uma coisa muito importante: o esqueleto e órgãos internos, que haviam sido descartados no espécime taxidermizado. Smith sabia que seria importante encontrar outro espécime intacto para ser completamente descrito, mas nos próximos 10 anos nenhum outro Celacanto foi encontrado na costa da África do Sul, aquele peixe deveria estar perdido e seu real habitat deveria ser em águas mais distantes. Pensando nisso, Smith viajou e espalhou pôsteres por toda a região oferecendo uma recompensa de £100 para qualquer um que lhe entregasse um Celacanto inteiro.
Pôster preparado por J. L. B. Smith oferecendo uma recompensa para quem lhe trouxesse um Celacanto inteiro, o pôster contém a mensagem em português, inglês e francês, principais idiomas falados nos países da costa leste africana, por onde Smith distribuiu os pôsteres.
Somente no dia 20 de dezembro de 1952, quatorze anos depois da descoberta, Smith recebeu um telegrama de um conhecido, capitão Eric Hunt, dizendo que havia encontrado um celacanto nas ilhas Comores e estava tentando preservá-lo com sal e o pouco de formol que tinha. O peixe havia sido pescado por um homem chamado Ahmed Hussein, que estava prestes a vendê-lo quando alguém lhe mostrou um dos pôsteres com as instruções de mantê-lo intacto. Smith queria viajar imediatamente para as ilhas, e estava preocupado por saber que lá não havia instalações de refrigeração, mas não haviam vôos nos aeroportos comerciais e os aeroportos privados estavam sem combustível. De alguma forma, Smith conseguiu convencer o Primeiro Ministro, Daniel François Malan, a fazer a viagem em um avião militar. O livro A Fish Caught in Time conta, dentre outras coisas, como as forças armadas da África do Sul tiveram que convencer as autoridades de Moçambique a permitir um avião militar em seu território por causa de um peixe – “Você realmente acha que nosso governo vai acreditar nisso? Você deve pensar que nós somos estúpidos. Vocês não conseguem pensar em uma história melhor para explicar por que desejam cruzar nosso território em um avião militar?”
Após uma espera agonizante para que tudo se resolvesse, foi no dia 28 de dezembro que Smith pousou nas ilhas Comores e foi imediatamente ver o peixe, que, apesar de aberto e do tempo que se passou, estava com todos os órgãos preservados e em bom estado. Em uma entrevista para a rádio, ele admite que chorou quando viu o peixe em sua frente pela primeira vez. No dia seguinte, Smith voltou para a África do Sul, onde passou os próximos meses trabalhando em examinar e descrever detalhadamente a anatomia interna do Celacanto.
O segundo celacanto capturado, com J. L. B. Smith à frente cercado pela tripulação e os militares que o levaram até Comores.
Atualmente, conhecemos duas espécies de Celacanto, Latimeria chalumnae, de coloração azul (quando vivo) e que ocorre no oceano índico ocidental; e Latimeria menadoensis, de coloração marrom e que ocorre nos mares próximos à Indonésia. Uma característica surpreendente dos Celacantos é sua longevidade, podendo chegar aos 100 anos e só atingindo a maturidade sexual por volta dos 50; e seu tempo de gestação que é o mais longo conhecido em todo o reino animal: as fêmeas carregam seus filhotes durante 5 anos!
Selo comemorativo com uma ilustração de J. L. B. Smith e M. Courtenay-Latimer examinando um celacanto.
*As cartas trocadas por Latimer e Smith são preservadas pelo Instituto Sul-Africano de Biodiversidade Aquática (SAIAB) e podem ser encontradas em https://www.pbs.org/wgbh/nova/fish/letters.html
*A entrevista dada por Smith está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=SbU_PxP2Yjk&t=1125s
Escritora: Adele Gastaldo
País: Brasil
Redes Sociais: @adele.gast
Que texto incrível! Essa história deveria virar um filme ou uma serie, se é que já não existe. Muito legal mesmo, e parabéns pelo trabalho de apresentar cada parte com riqueza de detalhes.